O ROMANCE “O GRANDE MENTECAPTO”
Edit. Record –Rio – 1ª ed. 1979
1.Eis que, de repente, em meio da enxurrada de romances e contos engajados, políticos, meras reportagens, sem criatividade e também sem estilo, aparece uma flor exótica, o novo romance de Fernando Sabino, O Grande Mentecapto (Record – Rio de Janeiro, 1979).
Depois de 23 anos de recesso, em que suas atividades literárias se estenderam pelo jornalismo, pela crônica, pelo conto e pela novela, volta ele ao romance, com este seu novo livro, em que a realidade é mostrada sob aspectos humorísticos e seu herói, um D. Quixote mineiro, vagamundeia pelas terras das Gerais. Bem longe estamos daquele quadro de uma geração abrindo seu caminho para a literatura e para a vida, que é o seu romance – memorialístico, Encontro Marcado, que tanto êxito obteve.
Como seus contos e crônicas prenunciavam, com seu humorismo, suas situações cômicas, suas ironias, suas sátiras, o novo livro compreendia tudo isto nas páginas deste romance picaresco em que o herói ou o anti-herói é como a criação imortal de Cervantes. Mas com seu imortal antecessor sempre teve um ideal de proteção dos fracos e dos humilhados, de consertar “Los tuertos” de que a vida está cheia. E mais, e um pícaro sem picarice, não é amoral, traiçoeiro, malandro, vigarista. Suas aventuras e desventuras lhe advêm da sua honestidade, do seu ideal, de seu senso da liberdade e da justiça. Por isso, como D. Quixote, sofre, apanha, é ridicularizado e morre defendendo um ideal de justiça e liberdade, ao se fazer o chefe duma revolta de presos, de loucos, de mendigos e de prostitutas.
Fernando Sabino acaba de criar com seu personagem Geraldo Viramundo, cujo nome verdadeiro é José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva, mas era conhecido por 52 alcunhas com as quais lhe marcavam a figura estranha, um personagem, que ficará em nossa literatura ao lado de um Leonardo Pataca, de um Marco Parreira, de um Simão, o Caolho, de um Simão Bacamarte, de um Capitão Vitorino, de um Coronel Ponciano, dada a imortalidade que lhes insuflaram seus criadores.”
(Oscar Mendes – in Um Romance picaresco – Estado de Minas – 12/12/1979)
2. Fernando Sabino, na posse madura da arte de escrever, mostra-se sempre à vontade neste livro ágil, matreiro e comovente, em que loucura e razão se entrelaçam, e não se sabe ao certo onde está o absurdo: se naquela, ao afirmar-se com espontaneidade e singeleza, ou nesta, que se cobre de formalismo e impostura. A vitória da segunda era inevitável. Todo romance que se preza acaba mal para o protagonista, como na vida. Nem por isso é invalidada a aura de sublime irresponsabilidade que envolve Geraldo Viramundo, herói caricato de um mundo alicerçado na violência e na iníquia repartição de coisas.
A escrita fácil de Sabino expõe um problema difícil, para não dizer insolúvel. Na essência, mineiros ou não, somos um pouco Viramundos, que a educação e a conveniência frearam no nascedouro, mas que nem por isso deixam de sentir bulindo lá dentro um princípio de inconformidade, ansioso de ar público. Viramundo é região em seu destino solitário. A gente sai do livro amando o mentecapto como o irmão que não tivemos, ou mesmo o pinel que guardamos ou que fantasiamos de sisudo, para melhor nos defendermos do bom senso de outros pinéis menos delicados.
(Carlos Drummond de Andrade in Viramundo, eu, você e os outros – Estado de Minhas – 1/12/1979)
3. Numa manhã mineira
feita de sol e montanha
uma figura estranha
apareceu.
Comida no papinho
pé no caminho.
Por esse mundo
Geraldo Viramundo
se meteu.
Nessas suas vãs andanças
levava um saco cheio de esperanças
e de sonhos atrevidos
e um montão de apelidos
pra quem quisesse xingar.
Com a roupa do corpo apenas
com algumas penas
de amor
e uma vontade louca de caminhar.
Era um cavaleiro andante
de muita fé
de fé de mais.
Mas não andava de cavalo galopante
andava a pé
pelas Gerais.
E foi deixando atrás
a briga e a paz
e as aventuras
de alegrias e loucuras
de um maluco sonhador
(Ai! Marília louco amor...)
que queria porque queria
a torto e a direito
dar um jeito
do mundo.
E foi ficando
ressoando
o riso, a vaia, o fracasso
a cada passo.
E foram também ficando.
Na memória das estradas
pelas ruas das cidades
suas marcas, seus sinais
a poeira levantada
a vida feita em pedaços
longos quilômetros de passos
tudo e nada.
E Geraldo Viramundo
pelo mundo
se perdeu.
Agora, a última cartada,
ou tudo ou nada
e Geraldo Viramundo
Giramundo
Rolamundo
de uma estocada
morreu.
4 – ENREDO & PERSONAGENS
Como é norma do romance picaresco, tudo gira em redor do herói, isto é, do pícaro. Em torno de Geraldo Viramundo e seus inumeráveis apelidos. Filho de um português, o Boaventura e de D. Nina, italiana. Seu nome de batismo: Geraldo Boaventura. Seu nome de nobreza: José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva. Sua glória e imortalidade: Viramundo. Um doido manso (doido de seguirmos os padrões tradicionais com que nossa sociedade mede normalidade e anormalidade) que saiu pelo mundo (das Minas Gerais), vivendo e sofrendo, em procura da liberdade. Uma liberdade natural, humana, total.
Nasceu e viveu sua infância em Rio Acima: fez tudo que os meninos, da idade, costumam fazer. Brincou muito no rio de sua terra. Fez para o trem que não parava nunca na sua cidade. Apostou que faria para o trem e ganhou a aposta de quinze amigos, treze meninos e duas meninas. (A Cremilda, filha da professora e amada de todos e a pretinha Salomé...) Com a façanha começa a virar herói. (Para parar o trem, ficou no meio da linha. O maquinista não teve outro recurso. Freou a composição. E xingou muito...) Um dia, de conversa com o Pe. Limeira, manifestou vontade de ser padre. Houve choradeira geral em casa. E ele foi para Mariana. Nada ou quase nada se sabe de sua vida seminarística. O certo é que um dia se meteu num confessionário e ouviu as inconfidências da viúva Correia Lopes, D. Pretolina, D. Lina, vulgarmente chama de Peidolina. Descoberta a malandragem, o seminarista Geraldo Boaventura foi expulso da casa sagrada do seminário... Mais tarde se põe em defesa da viúva, leva uma pedrada e é expulso aos gritos e empurrões. E começou a palmilhar os caminhos da vida: tinha 18 anos e se chamou Viramundo.
Suas andanças abrangem numerosíssimas cidade mineiras, de todos os cantos e tamanhos, até chegar a Belo Horizonte. Sempre metido em aventuras e desventuras... Foi em Ouro Preto que conheceu a amada do seu coração – Marília Ladisbão, filha de Clarismundo Ladisbão, Governador Geral das Minhas Gerais. (Viramundo, como D. Quixote, se apaixonou por essa Dulcinéia...) E o amor lhe trouxe muitas amolações. No meio dos estudantes que vão representar para o Governador, atrapalha tudo, erra o seu papel, é surrado e acaba num hospital. Numa festa ao Governador, o herói se mete em comilanças e acaba com uma irresistível dor de barriga. O toalete estava ocupado. Não podia esperar. Subiu uma escada, encontrou um cano, certamente do esgoto, e o jeito foi descarregar no dito cano. O cano descia livre, condutor de ar, em cima dum ventilador... A festa acabou, o Governador se foi... Sem a presença da amada, Viramundo deixa Ouro Preto. Esteve em Barcelona, acabou num hospício e candidato a prefeito. Na cidade, gastou o seu francês com o grande escritor Bernanos. Depois foi servir à Pátria num quartel. Foram tantas e tamanhas as suas atrapalhadas que foi devolvido à simples vida civil. Esteve em São João Del Rei, andou preso em Tiradentes, onde conheceu o João Toco que contou sua própria vida.
(Giramundo, Viramundo, Rolamundo... e o tempo, e a vida vão passando...) Até os profetas do Aleijadinho, em Congonhas, conheceram o grande metencapto.
Em Uberaba pegou touro à unha. Andou de ceca em Meca, cumprindo o seu destino de andejo. Em Cataguases, segundo dizem, foi confundido com o escritor Rosário Fusco, outro grande pícaro.
(Leitor, veja nas pág. 185 a 188 alguns lugares dos muitíssimos que o nosso herói conheceu. De agora em diante eles ficarão imortalizados pelo seu nome, isto é, apelido, e pela sua glória imortal...)
Em Belo Horizonte, metido com uma multidão de gente miúda, mendigos, prostitutas, vagabundos, desocupados, injustiçados, arraia-miúda... faz uma revolução. E com apoio de muitos políticos da oposição, parlamenta com o governador, mas nada resolve. A polícia cercou a Praça da Liberdade, dissolveu a multidão, acabou com a revolução do herói Viramundo. E ele sozinho, ou quase, com dois companheiros amigos fiéis, o Capitão Batatinhas e Barbeca (vendedor de esterco), se meteu em direção do Rio de Janeiro. Em protesto cívico, diante do Presidente, iam reivindicar os direitos de todos os injustiçados. Não chegou lá. No meio do caminho, perto de sua terra, foi amarrado, espancado e, com uma estocada no peito, fechou os olhos para este vale de lágrimas.
Geraldo Boaventura, 33 anos, sem profissão, natural de Rio Acima, foi enterrado como indigente numa cova rasa do cemitério local. Causa mortis: ignorada. Descanse em paz.
Foi assim que Geraldo Viramundo e todos os outros seus numerosos apelidos deixou o anonimato em que vivera, sofrera e morrera, para entrar na imortalidade.
Quem quiser saber do destino de muitos outros personagens dessas estórias, leia o epílogo do livro. O autor imortalizou ainda o último sorriso do pobre e grande herói.
“De viramundo, fica apenas o sorriso que se eternizou na sua face.”
Ai Viramundo, Viramundo, dessas Minas Gerais’.
Quem te conhece não esquece jamais...
Fonte: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/mentecapto
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